Todo semestre eu faço estágios obrigatórios atrelados às disciplinas do meu curso de pedagogia. Geralmente eles envolvem apenas observações de aula e entrevistas com professores e gestores de escolas públicas daqui de São Paulo. Este semestre, além das observações, foi a primeira vez que fiz regência.
Quando encontrava meus amigos e namorado depois do estágio eu me via falando sem parar sobre todas as experiências que tive com os alunos do 2º ano de uma escola estadual, e percebi que eram muitas histórias que precisavam ser externadas. Consegui organizar tudo em um relatório de estágio que apenas o meu professor de Metodologia de Português viu e do qual estou preparando um resumo para a professora da turma que acompanhei, mas quero compartilhar com mais gente. Como eu transcrevi o meu diário de campo inteirinho para fazer este trabalho, decidi publicá-lo aqui. Ele consiste das anotações que fiz durante minhas observações.
O que mais me marcou nesta experiência foi a estafa da professora V., que tentava alfabetizar 30 crianças de 7 anos sem assistente enquanto as treinava para avaliações externas que nada tinham a ver com a necessidade e o cotidiano dos alunos,e a exclusão de uma aluna angolana por toda a escola que a tratava como um fantasma.
A cada semana será postado uma entrada do meu diário de campo. Ao final, publicarei a análise que fiz de alguns aspectos observados e da minha regência. Acredito que estes textos podem ajudar aqueles que tem curiosidade para saber mais sobre a situação das escolas, já que a educação foi um dos tópicos centrais nesta campanha eleitoral. Sintam-se à vontade para comentar e questionar os posts, ok?
Dia 1
Conheci a turma a qual observei duas vezes por semana pelas manhãs até o fim do semestre. Era o 2º ano A, com 30 alunos que tinham entre 7 e 8 anos. A professora V pediu para que eu me apresentasse à turma e disse que eu estava lá para fazer atividades lúdicas com os alunos. Sentei ao fundo da sala. Na lousa estava escrito um cabeçalho, a “família do ja” (ja - je - ji - jo - ju) e a rotina do dia, que consistia de uma oração, ciências, recreio, português e matemática. Os alunos estavam estudando o bioma do Pantanal.
As carteiras das crianças eram novas, individuais, com mesa e cadeira separadas. Na sala existiam duas lousas, uma na parede frontal e outra na lateral, na qual eram pendurados cartazes com os nomes dos alunos, um calendário, uma lista de regras e imagens de animais do pantanal.
As carteiras das crianças eram novas, individuais, com mesa e cadeira separadas. Na sala existiam duas lousas, uma na parede frontal e outra na lateral, na qual eram pendurados cartazes com os nomes dos alunos, um calendário, uma lista de regras e imagens de animais do pantanal.
As crianças estavam em silêncio, copiando texto sobre o Pantanal que estava na lousa. A professora leu com os alunos o texto e pediu para que repetissem as informações que estavam na lousa. Neste momento, reparei que a aluna sentada na segunda carteira da primeira fileira, à frente da mesa da professora, estava sem caderno e estojo e não pôde copiar o texto.
Quando terminou o tempo que a professora havia separado para a cópia, ela pediu para que um dos alunos emprestasse o caderno para uma aluna terminar a tarefa em casa. V lembrou os alunos, neste momento, de uma excursão que fariam para o museu Catavento, apontando que teriam a possibilidade de ver instalações relacionadas com o conteúdo das aulas.
Quando o sinal do intervalo bateu, a professora não deixou que alunos saíssem da sala. “Para cada ação, uma reação”, ela disse, explicando que “quando a gente bagunça, a gente fica sem parquinho”. Então, a professora V levou as crianças ao refeitório, que fica no fundo do pátio coberto, ao lado do pátio descoberto. As crianças fizeram fila para receber a merenda ou comeram o lanche que trouxeram de casa.
Enquanto as crianças merendavam, V me chamou para a sala dos professores para tomar café. Neste momento, ela me contou que seu filho não estava bem e foi hospitalizado, ficando em UTI, e por isso teve que deixar a turma com o professor substituto na aula passada. Ela estava penalizando os alunos pois eles jogaram um caderno no professor.
V levou alunos de volta para a sala de aula. Como forma de castigo, eles não puderam brincar no intervalo.
Chegando à sala, a professora repete o que disse sobre ações e reações e explica que alunos precisavam aprender que direitos podem ser perdidos, que eles dependem dos outros e que deveriam tomar cuidado.
Nesta dia a V tinha escolhido um de seus alunos para ser seu assistente. Ele estava com dificuldades de encontrar um livro no armário. A professora perguntou a ele:
- Achou? Você é ou não alfabético?
Ele não respondeu, e assim que o encontrou levou até a mesa da professora.
Na próxima atividade do dia, os alunos receberam um mapa do brasil separado pelos diversos biomas que existem no território. Eles tinham que pintar a área correspondente ao pantanal, cortar o mapa da folha e colar no caderno logo após o texto que haviam copiado.
A professora alertou os alunos que estavam com dificuldades de terminar a tarefa porque não tinham conseguido copiar o texto da lousa:
- Vai tirar zero na prova! Você vem para estudar. Se não vai copiar, o que está fazendo aqui?
Com medo de serem repreendidos pela professora, os alunos que conseguiram cumprir com os deveres levaram seus cadernos para que a professora conferisse a lição.
- Voltem aos seus lugares! Eu vou passar em todas as mesas para conferir se terminaram! - disse a professora, porém, ela não conseguiu cumprir com a promessa.
Alguns alunos, ao cortar o mapa, ficaram com dúvida se precisavam manter ou tirar o título que estava no papel. Eles não conseguiram resolver esta questão com a professora, pois ela não passou nas carteiras e nem deixou eles se levantarem para mostrar a ela seus trabalhos.
Olhei novamente para a segunda carteira da primeira fileira e vi que a mesma aluna que não tinha caderno e estojo para a cópia também não recebeu o mapa para fazer a atividade. Ela estava sentada, brincando com a cortina da janela. E assim ficou até o final do dia.
- É letra bastão! Não pode letra de mão! É do jeito que está na lousa! - grita a professora, ao ver que um dos alunos que senta na frente estava tentando escrever com letra de mão.
No meio da atividade, um aluno, o GC, avisou a professora que uma menina saiu da sala chorando.
- Deus deu uma vida para cada um cuidar da sua. Vou dar um gato para GC, que aí ele cuida da dele e de mais sete.
- Eu tenho três gatos - disse outro aluno, animado para contar sobre seus animais de estimação.
- Eu tenho dois, os nomes deles são… - continuou outro aluno, enquanto crianças levantaram a mão para contribuir com o assunto de animais de estimação.
- Eu estou sendo sar-cás-ti-ca! - gritou a professora, fazendo com que muitas expressões de dúvida surgissem nos rostos dos alunos que haviam levantado a mão.
A aula continuou. Percebi que os alunos guardavam e escondiam as aparas de papel que sobraram do recorte dos mapas. Alguns utilizaram essas sobras de papel para desenhar, outros escreveram bilhetes para conversar entre si. Uma das alunas levantou a mão e perguntou:
- Posso fazer bilhetinho para mamãe?
- Não! - V respondeu.
Escondidos, muitos alunos fizeram cartões e bilhetes para levarem para casa e entregarem para seus pais.
- Quero saber se posso apagar a primeira parte. Tenho que começar português, já deu a hora! - A professora advertiu a turma.
Em seguida ela ameaçou GC., que apresentou dificuldades para copiar na mesma velocidade que a maior parte da turma em diversas aulas que observei:
- Vou mandar áudio por “Whats” para a sua mãe. Vamos ver o que ela vai achar disso? Você vai copiar na sua casa com a sua mãe.
Pude constatar que o “whatsapp” era utilizado como uma ferramenta pedagógica nas aulas, pois V enviava fotos da lousa para que alunos acabassem as cópias em casa quando não conseguiam acabar em aula. Ela também utilizava o aplicativo como forma de advertência, ameaçando as crianças de gravar vídeos e áudios das aulas para os pais quando elas não se comportavam da maneira que a professora esperava.
Após terminada a atividade dos mapas, a professora iniciou a aula de português retomando com a classe e explicando para mim um projeto de canções populares, no qual a turma foi dividida em três grupos que ficaram encarregados de cantar uma música para as outras turmas da escola. A canção do primeiro grupo era Asa Branca, a do segundo era Aquarela e a terceira era Se Essa Rua Fosse Minha.
V distribuiu as letras das canções para os alunos do primeiro grupo e pediu para que alunos separassem a música em estrofes utilizando chaves. Os alunos perguntaram se estrofe é uma linha, ou duas. Professora explicou que é um grupo de linhas separados por um espaço. Eles, então, circularam as estrofes. A professora pediu para apagarem os círculos e desenhou uma chave na lousa, explicando que era aquilo que ela queria.
V pediu para que alunos escrevessem o nome dos responsáveis por cada estrofe na frente das chaves desenhadas, escolhendo quem cantaria cada parte.
Enquanto a professora trabalhava com um grupo, os outros esperavam, cochichavam ou desenhavam.
- Professora, o E tá desenhando.
- E, eu não falei que não pode papel na mesa?
Assim, a professora tentou manter alunos em silêncio e parados enquanto focou o seu trabalho com um grupo. A professora demorou aproximadamente trinta minutos para organizar os três diferentes grupos e os alunos tiveram em torno de vinte minutos para lerem as letras sozinhos. Alguns alunos, com dificuldade para lê-las, perguntaram se podiam levar as cópias para casa.
- Eu não sou impressora para ficar dando música. Vocês vão estudar aqui na escola - respondeu V.
A professora explicou para mim e para toda a turma que o grupo de não alfabéticos ficou com canção de memória que tinha a letra menor porque era importante que participassem da atividade.
Mais uma vez, percebi que a aluna da segunda carteira da primeira fileira não estava incluída em nenhum dos grupos.
Um dos alunos, o P, não conseguiu ler a letra impressa pela professora, pois esta continha minúsculas. Os livros didáticos das crianças são escritos apenas com letras maiúsculas. Outro aluno, percebendo a dificuldade do colega, copiou toda a letra da música em letras maiúsculas para P. Quando V percebeu o que está acontecendo, ela disse:
- Já deveria saber. Quando falo para você copiar com elas [minúsculas] é para se apropriar disso.
Pude acompanhar a evolução deste projeto em diversas aulas. As crianças tiveram dificuldades de aprender a melodia e o ritmo das canções pois em nenhum momento a professora as reproduziu em um aparelho de som para que seus alunos as apreciassem. Elas levaram os nomes das canções para casa e treinaram em seus lares com o auxílio dos pais para aprender suas partes. Em nenhum momento foi discutido os significados das canções ou o que elas poderiam representar. Apesar dos problemas na execução do projeto, as crianças aprenderam as suas estrofes e conseguiram apresentar suas canções. O projeto foi significativo para todos os alunos, pois estes demonstraram orgulho de suas apresentações. O grupo de não alfabéticos se beneficiou do projeto pois eles conseguiram utilizar a letra das canções como auxílio para se lembrar de partes que tinham dificuldades.
Após recolher as letras dos alunos, a professora iniciou a aula de matemática, pedindo para que alunos lessem a tabela do livro didático de matemática que listava quantos animais e plantas estavam em extinção no Pantanal. A leitura foi feita em conjunto, com alguns alunos chamados pela professora para ler em voz alta.
Reparo que a aluna da segunda carteira da primeira fileira não recebeu o livro didático para acompanhar a atividade com o resto da turma.
Antes de liberar alunos para irem embora, V fala para alunos pegarem gibis da turma da mônica presentes em uma estante no fundo da sala para levarem para casa. Ela lembrou que na semana que vem alunos terão prova, apontando que ela “não vai ser uma coisa muito fácil”.
Consegui alcançar a professora V depois de levar os alunos até o portão da saída para perguntar sobre a aluna que ficou sem fazer nenhuma das atividades do dia. Ela me contou que o nome dela é M, e que havia feito trabalho de coordenação motora com ela de manhã. Rapidamente ela explicou que a M era da África e que quando chegou na escola não falava, parecendo um selvagem pela forma que corria e agarrava as outras crianças. De acordo com a professora, foi ela quem ensinou a M a falar e a usar talheres, e que ela não deixava a M usar os livros didáticos porque a aluna rasgava-os e colocava-os na boca, e ela não era uma pessoa que não gostava de desperdiçar materiais. V terminou lamentando que M voltaria para a África no final deste ano e que provavelmente desaprenderia tudo o que ela ensinou para a menina.
Após essa conversa, consultei o professor da minha disciplina de metodologia do ensino de português e segui sua sugestão de me aproximar da aluna, dedicando algumas horas do meu estágio com exercícios de tracejados, desenhos, contagem e diferenciação de letras com ela.
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