sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

Diário de um professor estagiário - Dia 3

Na última postagem, narrei o meu desconforto de ter acesso aos livros didáticos usados pelos alunos da turma da escola enquanto uma das alunas, a M, não tinha nenhum material em sua carteira. Era muito triste vê-la sem livros, cadernos, lápis e atividades. O seu dia escolar consistia em ficar brincando com a cortina da janela ao lado de sua carteira e conversar sozinha, já que os outros alunos a ignoravam ou a tratavam como uma bebê.
A impressão que tive foi que devido ao seu sotaque consideravam que ela não falava português, apesar de vir da Angola, país falante da língua portuguesa. Também a consideravam incapaz de aprender, pois ela era excluída de todas as atividade e dos reforços oferecidos aos outros alunos da turma que não estavam alfabetizados ainda.
Ser confrontado com este racismo naturalizado por toda a escola foi muito doloroso. A única forma de suportar a rotina do estágio foi agindo para tentar minimizar a violência sofrida por M.
No meu terceiro dia de observação, acompanhei a aplicação de uma prova de português, sondagens de alfabetização de dois alunos e conversei com a professora V sobre o aluno que ela mais deu bronca, o GC.

Dia 3

Em minha próxima visita à escola, os alunos estavam fazendo a avaliação bimestral de português. Cheguei um pouco antes do intervalo. Durante o recreio, pergunto para o GC o que ele acha da professora V. Ele diz que gosta dela.
Ao voltar para a sala, a professora fez exercícios de respiração e alongamento para que alunos retomem o foco na prova.
O G, que senta na frente da M, vira para trás durante a prova.
- Não olha para trás! - repreende V.
- Mas ela não sabe nada! - responde G.
Outro aluno pergunta para a professora:
- Pode desenhar atrás da prova? A M tá desenhando.
Um dos exercícios da prova é reescrever o final de um conto infantil. O espaço previsto para que as crianças respondessem esta questão era de uma página. Algumas crianças utilizaram folhas extras ou desenharam mais linhas atrás da prova com o auxílio de uma régua para conseguirem terminar exercício do jeito que tinham treinado com a professora durante as aulas.
Todas as provas que acompanhei eram padronizadas, feitas pela secretaria da educação com base no material didático da rede, tendo características similares a avaliações externas. A avaliação deste dia consistiu em exercícios de ditado, reconhecimento de palavras lidas, interpretação de um parágrafo sobre o pantanal e reescrita de uma história.
Os alunos que terminaram a prova foram à biblioteca da escola devolver livros emprestados. Esse espaço da escola é organizado por um senhor que mora em um dos condomínios vizinhos à escola e que se voluntaria como bibliotecário nas horas vagas. Por não ter um funcionário dedicado à manutenção da biblioteca, a escola a mantém fechada a maior parte do semestre.
Enquanto isso, a professora V me chamou para acompanhar a sondagem, anunciando para a turma que deveriam permanecer em silêncio pois iria começar a sondagem dos silábicos e não alfabéticos.
A professora colocou uma carteira ao lado de sua mesa, na frente da turma inteira, chamou uma aluna para sentar nesta carteira e colocou uma cadeira para mim ao lado da aluna. V inicia o ditado de palavras, falando pausadamente cada sílaba, repetindo diversas vezes para auxiliar a escrita da aluna de forma fonética. Em seguida, V dita uma frase para aluna escrever.
Durante todo o exercício a aluna se manteve de cabeça baixa e braços encolhidos, visivelmente constrangida por estar nesta posição. Acredito que devo ter contribuído para este sentimento, pois me sentei ao seu lado com a professora me explicando o que era silábico com valor ou sem.
A professora fez duas sondagens neste dia. Quando terminou, aproveitou para me contar do GC, o aluno alvo do maior número de broncas em aula. De acordo com V, ele é um caso com transtorno de déficit de atenção e está passando por um momento difícil pois presenciou um caso de violência doméstica em casa. Seus pais estão em processo de separação.

Nenhum comentário:

Postar um comentário