domingo, 3 de fevereiro de 2019

Diário de um professor estagiário - Dia 4

No meu último relato, escrevi sobre a avaliação padronizada de português que as crianças fizeram. A partir deste dia eu pude constatar como o projeto sobre o pantanal no qual os alunos trouxeram  de casa animais feitos de sucata para exporem em um evento na escola não era um movimento tão espontâneo assim. Presenciei as crianças fazendo diversas atividades de preencher fichas técnicas de animais, sendo treinadas à cerca das informações e formatação esperadas neste gênero textual.
Outra atividade que era repetida constantemente era a reescrita de contos de fada. Vi os alunos escutarem a história da Chapeuzinho Vermelho mais de uma vez, e a atividade que dava sequência à leitura da história era sempre a mesma: escrever o que leu/escutou com o máximo de detalhes lembrados e o mais próximo possível do original. 
Todo este treino em sala de aula em um mesmo tipo de atividade acontecia devido às provas padronizadas que exigiam este tipo de conteúdo.
Perceba que a relação é invertida. A professora não tinha autonomia para avaliar o processo de alfabetização dos alunos e à partir de suas demandas formativas criar atividades para que seus alunos se alfabetizassem. A rede estadual de São Paulo supõe habilidades necessárias para a faixa etária, cria atividades de  acordo com estas habilidades e aplica uma prova padronizada para todas as escolas medindo se as crianças alcançaram os objetivos esperados. As consequências deste processo é que as crianças com baixo desempenho nas provas por terem demandas formativas diferentes das que foram trabalhadas em aula são deixadas de lado, ou são treinadas para irem bem nas provas mesmo sem ter domínio ou entendimento do que estão à fazer, já que o desempenho da turma define se a professora merece ou não bonificação no salário. 
Não há saída, sem bonificação o salário é baixíssimo.
Aponto aqui a incoerência de culpar um suposto despreparo dos professores pelo baixo desempenho dos alunos da educação básica. Por mais preparado que estejam, mesmo que tenham ideias de atividades, avaliações formativas, projetos para alfabetização, abordagens construtivistas ou qualquer outra, há amarras no sistema que os impossibilitam de ser autônomos e de assumirem o seu saber. Tudo isso respaldado na falta de confiança no trabalho do professor. É um círculo vicioso.

Dia 4


Na próxima aula observada, quando cheguei, os alunos estavam terminando uma prova de matemática. A professora estava sendo auxiliada por uma professora eventual. As duas passavam nas carteiras dos alunos para auxiliá-los com gráficos e explicar os enunciados dos problemas.
- Você está fazendo pedagogia? Meus pêsames… Trabalhei 30 anos como professora. Hoje em dia é mais difícil, os alunos não respeitam e os pais não querem saber de nada - reclamou a professora eventual.
Em um exercício de interpretação de calendário, os alunos têm dificuldades em localizar os dias referentes às segundas-feiras do mês. 
- Onde é a segunda feira? Ah, é aí? Tá bom, conto todo dia o calendário e você presta bastante atenção - diz V, ironicamente, a um aluno.
A professora e a assistente tentaram atender a todos os alunos durante a prova. A maioria dos alunos não  conseguiam compreender o que liam nos enunciados e precisavam das professoras para interpretar o exercício para eles. Como a turma é composta por aproximadamente 30 alunos, elas estavam sobrecarregadas.
A B, considerada uma das melhores alunas pela professora V, levantou a mão para perguntar algo. Como V não respondeu, ela se dirigiu até a professora. V, sem perceber quem era o aluno que a chamava, gritou com a B, falando para ela ir sentar em seu lugar. 
Ao final da prova, V pede desculpas a B, diz que está muito cansada, doente, que a rotina está atrapalhada, mas ela estava errada e não deveria ter gritado. B chora e aceita as desculpas.
Nesta aula, a V me contou que trabalha como professora eventual em uma escola próxima a sua casa à tarde, mas que está considerando largar o segundo emprego porque o que ganha só dá para pagar remédios. Ela disse que tem horário pedagógico duas vezes por semana, e em um deles faz um curso de matemática. Ela disse que está com atestado médico de três dias mas que não pode deixar a turma sem aula, então ela veio trabalhar doente. Ela passou mal, foi ao pronto socorro com dor na garganta, estava quase sem voz. Reclamou do barulho da turma de cima que faz com que ela grite em sua aula. Devido a este barulho, ela não escutou o sinal do recreio, saiu atrasada para o intervalo e os alunos tiveram menos tempo para brincar, voltando para a prova mais cedo e atrapalhando sua rotina.
Após a prova, os alunos continuaram trabalhando no projeto de canções. Cada um recebe a sua letra de música, devendo copiá-las em seus cadernos e depois lê-las em silêncio. Durante esta atividade, a professora pediu meu auxílio para cortar cartolinas nas quais os alunos colariam as canções para a apresentação.
Enquanto alunos praticavam a canção, eu pedi autorização para me sentar ao lado da M, peguei o meu estojo e uma folha do meu caderno para ela e disse que poderia desenhar. A M fez garatujas coloridas. Perguntei sobre sua família e de onde ela vinha. Ela me contou que veio da Angola, mas que seus pais ainda estavam lá, que tinha um irmão e que morava com sua tia e sua avó. Eu falei para ela desenhar sua família, e ela desenhou garatujas para representar os seus parentes. Desenhei minha mãe e meu pai no papel, escrevi seus nomes e contei para ela que aquela era a minha família. Ela perguntou os nomes dos meus pais, repetiu o nome deles algumas vezes e sorriu.
Depois de tudo pronto, cada grupo se apresentou para turma, apresentando dificuldades no ritmo e na melodia das canções como explicado anteriormente.

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